20100711

Quinta parte: "Já era"

Eu não sou um super-herói, eu sou um morto-vivo. A única coisa que me diferencia dos outros é a imunidade ao vírus. Só. Se eu levar um tiro de espingarda na testa meu cérebro vai pintar a parede de vermelho, assim como acontece com qualquer ser humano. Eu não posso ficar brincando por aí. Um grupo de seis pessoas úteis e organizadas após o apocalipse é um porto seguro. O problema é que, entre eles, existia um meio zumbi igual a mim. Sim, existem mais pessoas que sofrem do mesmo problema, ou da mesma solução.

Fiquei feliz em saber que eu não era mais um vingador solitário. Só havia um problema. Um grupo de seis pessoas não é seguro se uma delas compromete toda a segurança dos outros. Esse era o problema de Abs. Meio zumbi com problemas de alcoolismo. Na verdade eu era mais propenso a ter esse tipo de problema.

Alguns meses haviam se passado e eu integrava o fronte de batalha do grupo. Sob as ordens do nosso estrategista, Tanque, era eu quem fazia a maioria das missões arriscadas, além de me submeter a contato direto com os mortos vivos a fim de desviar atenções, já que eu podia me submeter a esse tipo de investida. Não, eu não era o único que podia fazê-lo. Abs também podia, mas ele estava sempre quieto demais. Não se comprometia a fazer nada para ajudar o grupo, vivia isolado em sua depressão de zumbi. Veludo e Cinza sempre diziam que ele ainda era humano e que por isso, devíamos protegê-lo a qualquer custo. O resto do grupo o olhava com desprezo e ele me olhava com mais desprezo ainda por ver que alguém como ele tomava posições importantes sem aparentar ter nenhum problema. Eu tinha problemas. Psicológicos principalmente, mas eu não os deixava perceber. Não queria parecer uma ameaça.

Peso morto. Cada dia que se passava Japonês, Tanque e Astro discutiam sobre a permanência de Abs no grupo. Ele podia matar todos nós se surtasse. Ficava na maioria das vezes, encolhido em um canto da casa. Sofria de abstinência por causa da falta de álcool. Não ajudava em praticamente nada. Tinha pânico noturno, ocasiões em que era ajudado por Veludo e Cinza. Igual a mim, porém, burro e inútil. Minha paciência seguia o mesmo rumo dos três que passavam a desprezá-lo cada vez mais. Até que então as coisas mudaram para ele.

Numa defesa contra uma horda de zumbis grande como jamais havíamos visto atraída pelos gritos de desespero de Abs em seu pânico noturno, eu vi que todos ali iriam morrer se eu não fizesse alguma coisa. A casa estava cercada e eles se concetravam na porta da frente. Fácil de matar, já que tínhamos algumas metralhadoras. O problema é que não haviam mais lugares disponíveis na cidade para o abastecimento da munição das metrancas. Balas de pequeno calibre são fáceis de se encontrar, mas balas de fuzis e sub-metralhadoras só eram encontradas em delegacias e quartéis abandonados. E a munição que encontravamos nesses lugares já havia se esgotado devido ao ataque freqüente de hordas que caminhavam de cidade em cidade.

A fumaça subiu da ponta quente do fuzil de Tanque. Não havia mais munição. O fuzil de Astro também ficando sem munição. A janela de madeira mal vedada por Cinza estava cedendo a tantos golpes de mãos quebradas de mortos-vivos. Os dois fuzis estavam agora inutilizados e as balas de pistola não seriam o bastante para derrubar todos eles. Abs gritava mais e mais, como nunca tinha gritado antes. Eu tinha que fazer alguma coisa, atirar somente não iria adiantar, eu tinha que despistá-los como de costume mas dessa vez eram muitos até pra mim. Dessa vez se me cercassem arrancariam meus membros certamente. Não havia outra forma. Pedi a Cinza que abrisse a porta dos fundos. Saí por trás sa casa com duas pistolas de calibre de merda , a espada presa nas costas e uma granada de mão. Corri como corri várias vezes antes. Entrei na casa em frente, e me abriguei na cozinha. A porta era estreita, assim a passagem deles era restrita, só passavam poucos por vez. Encostei as costas na porta que dava para o quintal e apertei os dois dedos nos gatilhos. Sete balas tinham os pentes das pistolas, quatorze tiros até eu ter que recarregar. Foi o bastante para derrubar algumas unidades do inferno. Se eu parasse para recarregar, era o adeus. Sendo assim, quando acabaram as balas, me virei, abri a porta que dava para o fundo da casa, passei e tranquei-a por fora. Arranquei o pino da granada e joguei-a pela janela para dentro da casa. Deu tempo deles olharem com curiosidade o que caía sob seus pés antes de eu transformar a cozinha em um misto de destroços, membros e suco de sangue. Haviam sobrado poucos, o bastante para serem mortos pelo pessoal assim que eu voltasse para a nossa casa de resistência. Dito e feito.

O susto havia passado. Abs continuava a gritar exageradamente. Tanque, Astro, Japonês e eu fomos até o quarto quando ouvimos um grito de Veludo. Cheguei lá e vi o horror. Abs comendo o pescoço de Cinza no canto do quarto. Quando vi aquilo, fiquei paralisado. Quando ele percebeu nossa presença, levantou-se sujo de sangue da boca até a cintura, virou-se para nós, soltou um grito gutural e veio correndo em direção a mim.

Tanque sacou sua Taurus e enfiou uma bala na boca de nosso ex-amigo. Caiu ao chão seu corpo pálido. Eu me lembro exatamente das palavras de Tanque. "Já era". Todos olharam para mim. Eles sabiam porque eu havia ficado paralisado. Eles sabiam. No fim, Abs não sofria de pânico noturno nem depressão, era somente um processo mais lento de tranformação. Os imunes ao vírus não eram mais imunes ao vírus. O processo só era retardado Eles sabiam que eu havia visto o mesmo acontecendo comigo em breve. Eles sabiam que eu me vi sujo de sangue da boca até a cintura. Eles sabiam que eu me vi morrendo com uma bala na boca e com o cérebro espalhado pela parede.

Eu não era imune ao vírus, ele só se desenvolveria muito mais lentamente em mim do que nos casos normais. Eu iria definitivamente perder a consciência, pois zumbi eu já era. Eu tinha que deixá-los, eu tinha que morrer. Tanque estava certo, para mim, já era.